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16 de março de 2010 –

Como criar para si um modo de produção?

[1]

Diogo Liberano

De todo modo você tem um (ou vários), não porque ele exista previamente ou lhe seja dado pronto – se bem que de alguma forma ele possa até já existir – mas de todo modo você faz um, não pode criar artisticamente sem fazê-lo – e o seu Modo de Produção espera por você, é um exercício, uma experimentação inevitável, já feita no momento em que você a empreende, não ainda efetuada se você não a começou. Não é algo tranquilizador, porque você pode falhar. Ou, às vezes, pode ser aterrorizante e conduzir o seu projeto artístico à morte. Um Modo de Produção é a negação de uma criação, mas também a criação em si. Não é uma noção, um conceito, mas antes uma prática, um conjunto de práticas. Não se chega a um Modo de Produção, não se pode chegar a ele, nunca se acaba de chegar a ele, posto ele seja um limite. Quando se diz: é isto – um Modo de Produção – já se está sobre ele. É sobre ele que dormimos, que lutamos e somos vencidos, que procuramos nosso lugar, que descobrimos nossas felicidades inauditas e nossas quedas fabulosas, que criamos e somos criados, que amamos. É uma experimentação não somente de produção, é também ética e estética. Política e experimental. Não deixarão você produzir do seu jeito.

 

O Modo de Produção (MdP) já está a caminho desde que o artista tenha se cansado dos modelos estabelecidos e legitimados – modelos comercializáveis e comercializados – e quer se ausentar deles, ou antes, quer se perder deles; desde que tenha se perguntado, ao menos uma vez, como começar. Como começar de novo. Longa procissão: – do artista hipocondríaco, cujos reclames das poéticas e modos de produção vigentes são incessantes, artista cuja produção já está destruída, a destruição já concluída, pois nada existente parece lhe servir: “A Atriz X afirma que seu novo projeto não é teatro, nem dança, quiçá performance, afirma não pertencer a um estilo reconhecido na contemporaneidade e muito menos semelhante às poéticas clássicas, enfim, ela afirma tudo aquilo que não é o seu projeto, sem que lhe reste energia para sugerir o que possa ser a sua nova criação”; – do artista paranóico, cuja produção artística é atacada por influências do que está na moda, mas também restaurada por energias exteriores: “Ele viveu muito tempo sem realizar nenhum projeto, sempre procurando se adequar aos modelos em voga, fazendo reverência às referências artísticas, mudando os termos (ora diretor, ora encenador, depois mudou elenco para artistas-criadores, criação coletiva por colaborativa etc.), mas por algum milagre, certa vez, alguém achou ousada a sua inata confusão e então ela virou tendência e lhe rendeu uma ou outra indicação aos prêmios teatrais da cidade...”; – do artista esquizo, preso a uma luta interior ativa que ele mesmo desenvolve contra o MHdP (Modo Hegemônico de Produção), escrevendo poesias no lugar da apresentação do projeto, fazendo charadas ao invés de informar a sinopse, filosofando onde era solicitada apenas uma planilha orçamentária etc”; – do artista drogado: “Como é possível que um patrocinador não invista numa peça que condene o capitalismo? O que são dois milhões de reais para quem sonega bilhões por ano? Um milhão é o preço mínimo da nossa peça, ela precisa ter, no mínimo, setenta atores e precisa ser encenada dentro de um navio abandonado”; – e do artista masoquista: que se deixa amordaçar pelos fundos de cultura (municipais, estaduais e federais) e, ano após ano, divulga abertamente a reprovação que obteve em todas as inscrições que fez, intensificando a própria humilhação por não ter sido contemplado (mais uma vez) e obtendo prazer por se tornar um artista conhecido por sobreviver sem nunca ter sido contemplado por um edital sequer.

 

Mas por que este desfile lúgubre de artistas amarrados e inertes, posto que o MdP seja também pleno de alegria e de êxtase? Por que é necessário passar por estes exemplos? Artistas esvaziados em lugar de plenos. Que aconteceu? Você agiu com a prudência necessária? Não digo sabedoria, mas prudência como regra intrínseca à experimentação: injeções de prudência. Será mesmo tão triste e perigoso não ter espaço para ensaiar uma peça teatral (e, por isso, não fazê-la), não ter orçamento para gastos de cenário e figurino (e, por isso, desistir), nem uma longa temporada de apresentações (e, por isso, deixar para um futuro melhor)? Por que não ensaiar nas ruas da cidade, usar os móveis de casa e as roupas do guarda-roupa, realizar cada apresentação como se jamais fosse haver outra? Coisa simples, plena Criação, Processo criativo, tenaz Tentativa, Limite inventado, arranjada Expansão, Erro alcançado, acidental Boicote, Experimentação. Onde um edital de fomento à cultura diz: Pare, qual é a justificativa do seu projeto?, seria preciso bradar: não tenho que justificar aquilo que sequer nasceu, preciso ir adiante, não encontramos ainda nosso MdP, não desfizemos ainda suficientemente da exigência de ter que caber nos modelos autorizados para só então criar arte. Encontre seu Modo de Produção, saiba fazê-lo, é uma questão de vida ou de morte. É aí que tudo se decide.

 

Você é um estudante de teatro de uma universidade federal brasileira cursando o seu quinto período, ansioso por criar o seu primeiro exercício de direção teatral (no período seguinte). Antes disso, você recebe as regras do jogo: “1) é direito seu ter um professor orientador, no caso, o da própria disciplina na qual se originará sua criação; 2) você deve apresentar o seu projeto de encenação antes do início do semestre letivo (ele será debatido com o professor); 3) a duração máxima de sua criação cênica deve ser de 30 minutos; 4) ela deve ser realizada em uma das salas de aula ou em outro espaço da Escola, conforme definido em acordo com o professor; 5) você pode fazer uso de iluminação básica e som fornecidos pelo Curso de acordo com a viabilidade técnica; 6) caso existam, cabe ao aluno custear gastos relativos à produção de cenários e figurinos (ficando a sua disposição o mobiliário da Escola); 7) é proibida a solicitação de quaisquer recursos financeiros à Universidade; 8) cabe ao aluno ser o próprio produtor de sua criação (podendo, eventualmente, formar uma equipe junto a outros alunos); 9) o texto a ser encenado deve ser dramático, ou seja, escrito especificamente para teatro; 10) é vetada a montagem de textos que sejam de autoria do próprio aluno-diretor; 11) o elenco da montagem deve ter apenas dois atores (o aluno-diretor não pode atuar na sua montagem nem em outras montagens da mesma disciplina no mesmo semestre); 12) serão realizadas cerca de duas apresentações, conforme a disponibilidade de espaços e recursos técnicos (sendo que uma das apresentações deverá atender ao corpo docente e discente do Curso); 13) toda a divulgação deve ser prioritariamente interna (incluindo a faixa etária correspondente à criação); 14) a avaliação final será realizada em sala de aula a cargo do professor da disciplina.” – Isto não é uma projeção ideal, é antes um programa: há diferença essencial entre a idealização de como um projeto deve ser e a experimentação do programa; diferença entre a ideia preconcebida, sonhada e que ainda não veio, e o programa, motor de experimentação. O MdP é o que resta quando tudo foi retirado. E o que se retira são as categorias ideais de produção em arte, o conjunto de meios e modos que acabam por se tornar um modelo único de como se deve produzir uma nova criação e criar uma nova produção.

 

Algo vai acontecer, algo já acontece. Mas não se deve confundir o que se passa sobre um MdP e a maneira de se criar um para si. No entanto, um está compreendido no outro: a produção (de uma criação) e a criação (produzida) em si. Daí as duas fases afirmadas na carta precedente ao estudante de teatro. Por que duas fases nitidamente distintas, enquanto se trata da mesma coisa em ambos os casos, obrigações (destinadas do professor ao aluno) e escolhas (tomadas pelo aluno a partir das diretrizes do professor)? Uma é para a fabricação do MdP, a outra para fazer aí circular, passar algo; são, no entanto, os mesmos procedimentos que presidem as duas fases, mas eles precisam ser experimentados.

 

(Alguns) Patrocínios, (alguns) Fundos de Cultura e (alguns) Incentivos Fiscais à Cultura – aqui reunidos na sigla MHdP (Modo Hegemônico de Produção) – traduzem tudo em projeções ideais, comercializam imagens desprovidas de seu rastro produtivo, preservam apenas aquilo que querem (o ideal) e perdem a materialidade dos corpos (o real) no mais alto grau, porque perdem o MdP. Para cada tipo de MdP devemos perguntar: 1) Que tipo é este, como ele é fabricado, por que procedimentos e meios; 2) e quais são estes modos, que coisas inesperadas podem acontecer em relação à expectativa, qual a expectativa? Pode-se fracassar nas duas etapas e, no entanto, é o mesmo fracasso, o mesmo perigo: tanto no nível da constituição do MdP como no nível daquilo que passa ou não passa por ele. Acreditava-se ter criado um bom MdP, tinha-se escolhido o Lugar, a Potência, o Coletivo (há sempre um coletivo mesmo se se está sozinho) e, no entanto, nada passa, nada circula, ou algo impede a circulação. Um ponto de bloqueio, talvez. Pode-se localizar este ponto perigoso, mas seria necessário expulsar o bloqueador, ou, ao contrário, se poderia amar aquilo que dificulta o vir a ser de uma criação? Bloquear, ser bloqueado, não seria também uma intensidade? Em cada caso, definir o que passa e o que não passa, o que faz passar e o que impede de passar. Abridores de portas e fechadores de armadilhas. O artista, o produtor, seria melhor passar a dizer artista-produtor, é tão somente agente de um conjunto de válvulas, represas, comportas, taças ou vasos comunicantes; agente fita crepe: o que povoa, o que passa e o que bloqueia o seu MdP? O que o compõe, o que o decompõe?

 

Um MdP é feito de tal maneira que ele só pode ser ocupado por afetos. Afetos como intensidades que por ele passam e circulam. Mas o MdP não é um suporte onde aconteceria algo, não é espaço e nem está no espaço. Nada a ver com um cenário ideal e idealizado. O MdP faz passar intensidades, ele as produz e as distribui de modo intensivo, é matéria intensa e não formada, não formatada, intuição amorfa, a matriz intensiva, a intensidade = 0, mas nada há de negativo neste zero, não existem intensidades negativas nem contrárias. Produção de arte como grandeza intensiva a partir do zero. Por isto tratamos o MdP como o ovo precário (zero) anterior à formação de uma obra artística e à organização das partes que vão compor seu arranjo final, antes mesmo de algum sentido o intenso ovo (0) precário se define por acompanhar as relações de velocidade e lentidão entre suas partes, a matéria e o imaterial dissolvendo pessoas e sujeitos, certezas e modelos, liberando movimentos e outras possibilidades artísticas e relacionais, pois as partes de uma composição artística somente aparecem e funcionam aqui como intensidades puras. A criação artística embaralha funções por todo o lado, pois seu MdP opera fora de toda a constância. O MdP enquanto ovo (0) precário convida o exercício da produção artística a se voltar contra os modos reconhecidos e viciados, pois reconhece precariedade mais como potência do que como mera debilidade, posto a precariedade seja também a manifestação da incompletude (do processo de produção e da criação artística) que, em instância primeira, é constituinte da própria vida humana.

Finalmente, o grande livro sobre o MdP não seria a “Ética” de Spinoza? Pois se o MdP é sempre uma questão de experimentação, então somente ao sabor dos encontros aprendemos a selecionar o que convém com a nossa produção, o que não convém, o que aumenta sua força de realização, o que a diminui, o que aumenta sua potência de ação, o que a diminui. Porque o MdP é um plano de proliferação e de contágio a partir do qual o que está em jogo é a consistência com a qual ele consegue reunir diferenças, elementos heterogêneos, e também como possibilita florescimentos múltiplos, enfim, o brotar de uma criação artística. As propriedades do MdP – que também são suas matrizes produtivas – são as vibrações e os encontros, os encontros que vibram, são as intensidades dos afetos que por ele passam. A ética seria um estudo das composições, da composição entre relações, dos modos e das relações de trabalho em que resulta tal ou qual MdP. Não se trata de seguir nenhum mandamento de produção, cartilha prévia ou receita, mas de avaliar as maneiras de vida e criação que resultam desta ou daquela composição, deste ou daquele encontro, desta ou daquela afetação. Pois o MdP como processo excede todas as categorias ideais e forma um ciclo ao qual o desejo artístico se firma como princípio imanente. O MdP é o campo de imanência do desejo e da produção criativa, o plano de consistência próprio do desejo de criação (ali onde o desejo de criar se define como processo de produção, sem referência a qualquer instância exterior que pudesse inscrever faltas que viriam a torná-lo oco ou a qualquer prazer vindouro que saciaria a sua constante busca).

Cada vez que o desejo de produção teatral é traído, arrancado de seu campo de imanência, é porque há uma banca avaliadora de projetos artísticos, um programador de um espaço cultural e/ou um curador artístico de mostras e festivais. Eles lançaram a tríplice maldição sobre o artista-produtor: a da falta, a da pauta, a da próxima edição. A banca avaliadora diz: “o projeto desta peça teatral é aquilo que te falta, caro artista”. Desejo é tornado falta (como se uma criação artística só pudesse existir para confirmar o já existente, como se ela não pudesse, justamente, forjar outros possíveis). A banca avaliadora, assim, opera o primeiro sacrifício, denominado castração, e todos os artistas passaram a ler seus próprios desejos não como potência de ação – e de transformação – e sim como falta, enfileirando-se frente à banca e gritando: “falta é a nossa lei comum”. Depois, veio um programador de um espaço cultural e relacionou o desejo do artista ao mero prazer. Porque existem programadores culturais hedonistas, inclusive invejosos. Eles acreditam que o desejo do artista se resume ao prazer de ter uma pauta num teatro público ou privado, que dar uma temporada ao artista é saciar o seu desejo de aparecer aos olhos do público e, também, que se trata de uma maneira de descarregar esse prazer e de se livrar dele. Eis um prazer-descarga: o programador cultural opera o segundo sacrifício denominado masturbação, mantendo o artista refém de ter ou não uma pauta para apresentar sua criação, tornando-o refém de aspectos exteriores aos que pulsam sua criação. Depois, vem um curador de uma mostra ou festival de teatro e diz: “o seu gozo é impossível, caro artista. Mas tente fazer parte da nossa programação ano que vem porque a coisa funciona sempre na impossibilidade, continue tentando que, num ano, com certeza vai rolar”. O curador de festival opera o terceiro sacrifício, próxima edição ou trezentos e sessenta e cinco dias, enquanto muitos artistas cantavam: “sim, seremos vosso ideal e vossa impossibilidade, os vossos e também os nossos”.

 

A figura mais perversamente inventiva em relação às maldições destinadas ao artista-produtor é o patrocínio, investimento que uma empresa faz com o intuito de receber em troca um retorno institucional e/ou de marketing coerente com o valor aplicado no projeto artístico. O patrocínio usa a criação artística que patrocina como um modo de divulgar a sua própria marca, independente do propósito artístico da obra patrocinada. Foi este o seu modernismo. Por exemplo, a interpretação que um patrocinador faz do artista drogado que lhe solicita dois milhões de reais: quando o artista não é tomado por louco, pressupõe-se que ele só possa atingir o prazer de sua realização por intermédio de humilhações como ter que incluir na sua criação a divulgação excessiva da marca do patrocinador. Isso quando não lhe é delicadamente imposto mudar o teor estético (e, logo, político) de sua criação, tornando-a uma peça publicitária da empresa patrocinadora. Porém, nada disso é exato, pois o sofrimento do artista drogado é o preço que ele deve pagar não para ter o prazer de realizar sua produção, mas para manifestar o seu desejo criativo como algo que ultrapassa as medidas impostas pelo patrocinador. No caso do artista drogado, a efetiva realização de seu projeto artístico não é de forma alguma o que só poderia ser atingido caso houvesse um patrocínio, mas justamente a postergação ao máximo de sua realização, porque realiza-la interromperia o processo contínuo do seu desejo. Existe uma alegria imanente ao desejo, como se ele se preenchesse de si mesmo, fato que não implica falta alguma, impossibilidade alguma, que não se mede pelo patrocínio que possa vir, posto seja nesta alegria que aconteça a distribuição das intensidades de prazer e onde não há entrada para a angústia. O que um artista drogado faz ao não ser contemplado por um patrocinador? Ele não cessa de desejar, essa é sua ação primordial. É nessa repetição que o drogado – para além de abrir outras e novas imagens – opera uma diferença, uma inversão: lá, onde o patrocinador não tolera investir seu dinheiro, é justamente lá onde o drogado opera intensivamente, não para saciar um desejo porventura incompleto, mas para manifestar que o patrocínio – talvez – não possa dar conta de tudo, nem tudo possa financiar. Uma coisa explode na outra, cria circuito com outra: desejo intensificado do artista e impotência produtiva do patrocinador. A produção de demandas que parecia ser mero delírio do artista é deslocada ao patrocinador: é este quem não tem capital para vingar a criação daquele. O artista drogado construiu um desvio que traça e preenche o campo de imanência de seu desejo, constituído dele próprio e também do patrocinador que nem precisa chegar. Resultados a serem obtidos: “Que eu esteja numa espera contínua por teu financiamento e que, pouco a pouco, a nossa oposição dê lugar à fusão de minha pessoa com a tua, caro patrocinador. A este respeito, é preciso que ao simples ruído de minhas demandas você tenha medo. Desta maneira, não será o seu aporte financeiro o que me impressionará, mas justamente a sua ineficácia frente ao meu projeto que não precisa do seu patrocínio para perseverar”. Que artista se cria quando se permite o jogo drogado? Mais que isso: que imagens brotam? Que poéticas poderiam advir das intensidades de seu MdP? Que existam outros meios, outros procedimentos diferentes daquele do artista drogado e certamente melhores é outra questão; o fato é que este procedimento convém a alguns artistas-produtores.

 

Assim também, seria um erro interpretar uma produção teatral estudantil ou universitária, por exemplo, através de uma lei da falta ou de um ideal de realização. A impossibilidade de se ter um financiamento externo dá testemunho de um estado conquistado pelo artista – e nem sempre por ele percebido – no qual ao seu desejo artístico-produtivo nada mais falta, ele preenche-se de si próprio e erige seu campo de imanência. O prazer do estudante de teatro é a realização tal como já realizada, do tamanho que ela se manifesta; realização que diz respeito à vibração dos encontros que ali acontecem – naquele espaço insuficiente se comparado aos ideais de infraestrutura, orçamento e divulgação. Este prazer de realizar – de efetuar – é o único meio para um aluno “se encontrar” no processo do desejo que o transborda e o faz criar. Trata-se de um MdP em virtude de singularidades que não mais se pode chamar de extensivas. Eram apenas trinta pessoas? Durou apenas trinta minutos, trinta e seis? Apenas duas apresentações? O “apenas” aqui é tudo menos “pouco”. O “apenas” é apenas o que é, apenas aquilo que se tem em mãos. Algo vai acontecer, algo já acontece. Tudo (ou quase tudo) é permitido desde que não seja exterior ao desejo nem transcendente a seu plano, mas que não seja também apenas interior ao artista-produtor. O menor exercício teatral pode ser tão intenso quanto uma peça de formatura; ser uma montagem de formatura é apenas um detalhe. O que conta é que o prazer da realização artística seja o fluxo que anima os modos de produção, MdP = Imanência, ao invés de uma medida que interromperia a produção ou que a tornaria dependente das exigências (faltas) do dito “mercado teatral” – matadouro onde legisla o MHdP. O desejo de um artista-produtor não se encontra apenas na realização da sua criação, mas também no passo a passo das intensidades do processo que a constitui.

 

É preciso insistir neste ponto, pois as intensidades costumam ser roubadas pelas finalidades. Dá-se um fim a uma intensidade quando lhe é imposto um destino ao qual deve chegar, quando uma intensidade vira mera produção de produto. E nem sempre é um MHdP que impõe ao artista-produtor tais finalidades. Por vezes, é o próprio criador – querendo corresponder ao que disseram ser o “certo” – que acaba ferindo o seu processo produtivo ao se impor, obrigatoriamente, ter que atingir um ponto, um final. Que projeção pode um artista universitário fazer daquela que um dia se tornará a sua profissão? Há todo um tipo de artista tornado padrão que é repassado ao estudante, dependendo do curso que frequenta. Ao fazer artístico foi dada uma finalidade, há um planejamento – uma carreira artística – que inclui desenvolvimento e formação, desenvolvimento de linguagem e formação de um sujeito artista. É primordial ao artista desenvolver uma linguagem e firmá-la ou experimentar incessantes jogos de linguagens? Se uma criação se faz no tempo do processo, por que o MdP já estaria pronto? Disse um professor após dar nota máxima à primeira montagem teatral de seu aluno: “Eu realmente acho que no próximo ano, na sua próxima montagem, você deveria continuar pesquisando isso que já deu tão certo nessa”. A finalidade da criação é dar certo? O que é dar certo? E o aprendizado inerente ao processo de criação e produção? Todo o processo produtivo se perde quando se chega a isto que “deu certo”? Ora, Fulana é a artista que trabalha com teatro e cinema. Fulano é o que pesquisa metalinguagem. O outro só encena dramaturgias estrangeiras. É essa a pesquisa dele, ele não é um autor dela, mas uma autoridade no assunto. Quer dizer, ser artista é ser um sujeito centralizado e organizado por um Eu capaz de deliberar sobre imagens e técnicas? Mas, ora, um artista formatado tende a ser também um artista onde o pensamento e as intensidades não fluem, artista de meios e modos entupidos. Vamos entupindo os vasos de circulação das intensidades por sentidos fechados e, na medida em que investimos no jogo de ter que fazer sentido, alimentamos a necessidade de interpretações para conseguir acontecer enquanto artistas; nós mesmos investimos sobre nós um modo de dever, de vigiar e punir, um modo de produzir. Resta saber se é apenas a isto que se destina um artista. Ou se é este o seu desejo, caro artista-produtor.

 

Em 16 de março de 2010 [2], uma atriz e um diretor de teatro se sentaram frente a frente sobre o chão de um apartamento. Pode-se dizer que sentaram em roda (ou em ovo) porque, a despeito de um frente ao outro formar uma reta, havia tudo ao redor formando roda. Cadernos, textos, canetas, água, copos, poeira, café e a luz daquela tarde, tudo em reunião formando um intensivo ovo (0) precário. O propósito não era apresentar uma peça teatral para um determinado número de espectadores, mas compor um MdP. Não se deve confundir o que se passa sobre o MdP e a maneira de se criar um para si. Como construir para si um MdP, um planejamento imanente que opera através de possibilidades intensivas, não extensas, que estão à mão dos artistas-produtores? Que aconteceu? Eles agiram com a prudência necessária? É verdade que naquele encontro havia o desejo de efetuação da temporada (que seria algo como o gozo no bom momento de suas energias produtivas). Mas, isto é verdade apenas se direcionarmos a intensidade daquele encontro entre atriz e diretor rumo à viciada lógica do fazer teatral da cidade: criar uma peça de teatro, fazer uma temporada com no mínimo vinte e tantas apresentações para estar apto a ser indicado aos prêmios, ser indicado, de preferência vencer e, finalmente, atingir o tão desejado sucesso para conseguir – assim se espera – continuar trabalhando como artista de teatro... Vendo por outra face, o que de fato acontecia ali? Naquela sala, sobre aquele chão? O que acontecia de modo presente e imanente? Naquela tarde em março de 2010 foi traçado um plano de consistência próprio ao desejo daquele jovem grupo de artistas. É preciso frisar que algo vai acontecer (a temporada), mas que algo já acontece (a produção da temporada). Uma prática a ser praticada: pura multiplicidade de imanência, da qual um pedaço daquela produção pode vir da Secretaria Municipal de Cultura, um da Universidade, outro pode chegar por engano e outro pode estar presente a partir de uma carta que chega da Argentina liberando aos artistas-produtores os direitos autorais para encenar uma desejada dramaturgia sem que seja preciso pagar por ela. Tudo isso reunido numa prática onde o artista-produtor pega e faz o que pode com suas partes, seguindo suas visões, ele faz uso das coisas segundo uma ética-poética específica daquele projeto e estratégias que se formam a partir da experiência dessa experimentação. Os artistas-produtores não se rendem a idealizações prévias.

 

Como fazer do MdP uma estratégia, um planejamento em consistência? Como cozer junto, como compor artisticamente a partir da inevitável diferença de cada artista, como articular a multiplicidade num mesmo MdP? Para que isto seja possível, será preciso uma conjugação das intensidades produzidas sobre cada MdP que precisam ser compreendidas na dimensão de sua diferença e de sua constante mutação. Pois nada está pronto. Tudo respira. Articular a multiplicidade instável, no entanto, não é coloca-la numa fôrma, mas sim, valorizar a sua potência, a sua vibração. Criar em conjunto não seria compor arranjos de potências que vibram juntas? Para isso, é determinante não enquadrar todas as intensidades como se fossem as mesmas e, sobretudo, não contrapor à especificidade de cada processo criativo-produtivo os procedimentos já codificados e reconhecidos como modos de produção. Para fabricar um MdP é necessário descodificar os meios instituídos, não pelo mero prazer de seu desmonte, mas pela possibilidade de fazer de outra forma, através de outros modos e meios. Tal descodificação, no entanto, não precisa ser uma operação bélica, ao contrário, ela precisa encontrar como se expressar num ambiente de produção que se comunica quase que pelos mesmos gestos e palavras. Para descodificar um meio hegemônico é preciso fazer com que circule nele as diferenças capazes de lhe causar estranhamento (e, por extensão, modifica-los). Jogo de afirmação. “Estamos fazendo desse jeito. Não é do jeito que nos disseram que funcionaria, mas é do jeito como estamos conseguindo fazer, do nosso jeito”. Um MdP é sempre um jeito, uma resposta momentânea a um momento específico, nunca um manual. E para que ele aconteça é preciso tramar pontes entre as diferenças que por ele passam, a fim de dinamizar suas intensidades e fazê-las vibrar frente a um ou poucos modos de produção já reconhecíveis e cristalizados. Não se trata, porém, de um somatório que busque virar unidade, mas sim de pontes que façam encontrar diferenças para, então, formar redes.

 

Um hífen, por exemplo, é uma ponte. Pedaço de imanência. Ele pode vincular, por exemplo, o labor do artista ao do produtor, artista-produtor. Ele pode manifestar a indissociabilidade de um artista e de sua pesquisa, artista-pesquisador. Criação-Produção. Um hífen é um traço que sinaliza a existência de diferenças que se encontram e que, a partir do encontro, se afetam mutuamente e se fazem estranhar, estranhando também o meio no qual tais diferenças provavelmente seriam tachadas meramente de improdutivas. Cada MdP é também um Modo-de-Produção hifenizado. Cada MdP é ele mesmo um hífen que, ao agregar diferenças, se expande como um plano de consistência e afirmação. Hífen: componente de passagem, ponte, imanência intensiva e dilatada.

 

Para criar para si um MdP é necessário estar atento às capacidades de afetar e ser afetado que cada parte – em encontro – é capaz de gerar. O encontro é o que dá a consistência. Consistência, imanência, composição: atributos primordiais a um MdP para que se possa não apenas gerar a produção, mas também gerir a criação artística. Porque ela se dá a partir do que somos e do que temos quando hifenizados a outros artistas e produtores, a criação nasce do chão sobre o qual se pisa ou se arrasta. Mas isto é específico de cada encontro. Assim sendo, não é possível construir um MdP caso exista um MHdP ditando como se deve fazer nem aonde se deve chegar. O MHdP é, sem dúvida, um plano transcendental, teológico mesmo, que determina uma organização que vem de cima (tal como enviada por um Deus, que está fora da vida) e que coloca o artista-produtor numa posição refém, sempre aguardando deliberações (aprovações, legitimações...) de uma instância fora de seu plano de imanência. Isso abre um problema ético e político importante: por que se impõe ao artista-criador a projeção ideal de um MHdP? Será apenas porque um MHdP, por ser muito aplicado, torna-se, por isso, um modelo? Ou há algo mais? Frente a este “modelo ideal” de produção e, sobretudo, quando tem o seu MdP rebatido por ele, o que resta ao artista-produtor senão apenas uma diminuição de sua potência produtiva? Ora, a diminuição de sua potência produtiva é necessária para a perpetuação do poder hegemônico. Tal impotência é um afeto necessário, deve ser produzido e imposto quando o que se deseja é bloquear a emergência de outras éticas e poéticas de criação e produção artísticas.

 

Percebemos pouco a pouco que o MdP não é o contrário das formas vigentes de produção. Seus inimigos não são os modos de produção já existentes. O inimigo do MdP é, justamente, o impedimento de se fazer de outras maneiras, por outros meios e modos. O artista é o artista. Ele é sozinho. E não tem necessidade de modelo. O artista nunca é um modelo, não está numa fôrma. As fôrmas são as inimigas do artista. O MdP se opõe aos modelos vigentes, às organizações dos modos de produção que se pretendem únicas. O artista nunca é apenas um modo. E é este Um modo o inimigo do artista hífen produtor. O MdP não se opõe aos modos vigentes, mas, à tentativa de organização dos modos de produção que abole a possibilidade de existência de outros modos. Algo vai acontecer, algo acontece, mas algo também pode ser privado de acontecer. É contra essa possibilidade de privação que um MdP age, criando desvios que possibilitam o vir a ser de uma dada criação, independente de qual venha a ser o seu MdP. A existência dos MHdP não necessariamente age por negação a outros MdP, no entanto, sua repetição firma sua hegemonia e ela passa a determinar não apenas um modelo de produção, mas também o que pode ou não ser realizado em termos artísticos; o identificável, o aceitável e o estranho. Cria-se um sistema (teológico) onde se torna necessário ter uma autorização para produzir, ter uma licença para criar, um currículo, certa legitimação. Mas, quem autoriza o que pode ou não ser feito, quem determina como pode ou não ser produzida uma determinada criação artística? É desse deserto de poucas possibilidades produtivas, imposto e nutrido pelo MHdP, que deriva seu poder. É urgente falar sobre MdP se quisermos resgatar a autonomia não apenas produtiva, mas, sobretudo, criativa de um artista-produtor. Impor um modo de produção é mais que determinar um know how produtivo, é também – e pior – cercear poética e politicamente a criação. Afinal, a força política de um projeto reside também na sua diferença, no seu modo de operar fora dos padrões reconhecidos e ditos possíveis. O MHdP não é o artista, nem é seu MdP, mas uma imposição sobre ele e seu MdP, um fenômeno de acumulação e de sedimentação – um hábito – que impõe ao artista-produtor modelos, funções, relações hierarquizadas, modos transcendentes estruturados para extrair um trabalho útil da arte; para fazer entretenimento, produção de arte como produto de mercado. Ainda que um MHdP ao transformar o processo criativo numa produção de mercadoria venha a ser uma possibilidade, é nesse jogo que a experimentação artística tende a esmorecer. Afinal, o produto – cuja finalidade é ser infalível – não pode operar no risco da experimentação, não pode ser aquilo que não se consegue determinar previamente: sua finalidade está dada desde o antes. É preciso dar certo. Nós não paramos de ser explorados e transformados nas engrenagens que possibilitam a existência de um pequeno punhado de modos de produção e, por extensão, um pequeno punhado de cenas possíveis.

 

É sobre o MdP que vão se formar e agir os hábitos, valores e morais que definem linguagens hegemônicas, sentidos fechados e, sobretudo, certo tipo de artista. É sobre o MdP que pesa a fatalidade das finalidades artísticas e produtivas. É o MdP que sofre esse juízo, é nele que determinadas estratégias de produção, bem como formas éticas e estéticas, entram em composição para formar algo como um organismo aqui chamado Fôrma. O MdP grita: fizeram-me uma Fôrma! Dobraram-me indevidamente! Roubaram-me a arte e o artista! É o juízo que vem de fora que arranca o MdP de sua imanência e lhe constrói uma fôrma, um sentido fechado, um tipo de artista; artista conformado. É ele o artista sem autonomia crítica e simbólica, artista automatizado, formatado e limitado, artista sem hífen mesmo, posto de si apartado. Assim, o MdP oscila num combate perpétuo e violento entre o plano de consistência, que o libera à aventura da experiência, atravessa e desfaz modelos, e as superfícies de formatação que o bloqueiam ou o rebaixam ao mais do mesmo. E sendo o MdP um limite, se não se termina nunca de chegar a ele, é porque ele tem sempre a sua espreita um ou outro modelo, ele está sempre na iminência de ser açambarcado por uma formatação dentre as disponíveis e já vendidas no mercado da produção artística. Porque são necessárias muitas estéticas, muitas éticas – e muitas relações materiais e de trabalho – que não somente a Fôrma para operar essa plástica padronizadora do artista-produtor.

 

Consideremos três grandes formatações que amarram e podem render o artista-produtor mais diretamente: a linguagem, o sucesso e o profissionalismo. Aqui, chamaremos de formatações algumas variáveis que se tornaram medidas, uma espécie de filtro, medidas pelas quais o artista-produtor é processado. Ora, se são formatações, deduz-se que tomaram corpo e que, por isso, já se tornaram indiferentes a tudo aquilo que uma experimentação poderia ainda anunciar e fazer brotar. O artista-produtor é rendido, mais uma vez, pelas finalidades, por ter que corresponder ao que disseram – quem disse? – ser o perfeito, o ideal. “Você terá uma linguagem artística e, com o tempo, é ela quem terá você. A sua linguagem – que agora é você – só será satisfatória se puder ser entendida tanto por um público ‘comum’ como também por críticos e especialistas de plantão. O seu sucesso e a continuidade de sua carreira dependem disso. E quanto mais sucesso, mais profissional você será considerado. É simples, nem importa como você se sente em relação a tudo isso, importa como você é visto. Agora, se você não estiver de acordo, provavelmente você será um depravado, um desviante, um vagabundo, em suma, um amador”. Não deixarão você experimentar no seu canto. Mas, se o MdP oscila entre o plano de consistência e as superfícies de formatação, para ele, então, não existem intensidades negativas nem contrárias: ser um depravado, um desviante e/ou um vagabundo são possibilidades que manifestam existências e práticas fora da formatação padrão. A esse modelo padronizado, que seleciona e determina o que é certo e o que é errado, o MdP opõe desarticulação (ou outras articulações), opõe experimentação e também desvios. O que quer dizer desviar? E experimentar? Que quer dizer desarticular? Quer dizer parar de ser? Você agiu com a prudência necessária? Muitos são derrotados nesta batalha porque não se faz a coisa com pancadas de martelo, mas com uma delicadeza muito afiada. Com que prudência necessária, a arte das doses, e o perigo, a overdose. Dizem sobre explodir a coisa por dentro, mas se você já está dentro da coisa, como explodi-la sem ser soterrado junto? Desfazer-se da Fôrma nunca foi matar-se, mas sim abrir-se a conexões que supõem conjunções e encontros outros, outras passagens e distribuições de intensidade, outros afetos que talvez não pudessem ser previstos antes de serem experimentados. É este o limite: o que se abre quando se dispõe à experimentação e, também, tudo aquilo que se perde por não se abrir à experiência. Neste limite, desfazer a Fôrma não é mais difícil do que desfazer outros sentidos ou mesmo a identidade de sujeito artista. Os padrões de sucesso e profissionalismo colam na alma assim como a linguagem cola no artista e dela também não é fácil se desfazer. E quanto ao sujeito artista, como fazer para que ele se perca dos pontos de subjetivação – e sujeição – que o fixam e o pregam numa realidade dominante na qual, a ele, é reservado apenas o direito de servir, de corresponder aos modelos e nunca contradizê-los, nunca fazer de outro jeito? A prudência é a arte para criar um MdP; e se acontece que se tangencie a morte ao se desfazer da Fôrma, tangencia-se também o ilusório e o alucinatório quando o artista-produtor se furta das exigências de linguagem, sucesso e profissionalismo.

 

O MdP é o ovo, meio de intensidade pura, intensivo e não extensivo, a intensidade Zero como princípio de produção. O ovo designa sempre esta realidade intensiva onde se articulam encontros, distinguidos pelo poder de afetar e ser afetado. O ovo é o MdP e este não existe “antes” da Fôrma, ele está junto a ela e não para de se fazer. Se ele está ligado a um MHdP, por exemplo, não o está por conta de uma resiliência, por não ter conseguido “fazer parte” dos modelos hegemônicos, mas no sentido de poder fazer uso das intensidades desse MHdP a fim de desviá-las a favor daquilo que ele – o MdP – almeja criar e liberar. O MdP passa, então, a ser também o MHdP em termos de vizinhança, contemporâneo ao MHdP; ele está perto, junto, ao mesmo tempo em que distante, desconfiado. Os modelos se distribuem sobre o MdP; mas eles se distribuem nele como intensidades produzidas e fluxos. Frente ao “modelo”, o MdP lê “um” modelo. “O” modelo é apenas “uma” possibilidade para o MdP. “Um” gesto, “uma” ação, “uma” fala: ao artigo indefinido nada falta, ele exprime a pura determinação de uma intensidade que não precisa ser modelo para acontecer. O artigo indefinido é o condutor do desejo. O erro de alguns artistas e produtores foi ter compreendido os fenômenos do MdP como resilientes frente aos MHdP. Assim, amorteceram intensidades produtivas (o corpo, o real) e mantiveram as mesmas finalidades a alcançar (o modelo, o ideal): recortes de jornal, indicações aos prêmios e aprovações em editais.

 

Este não é um jogo de mera oposição, é antes de composição. Logo, é necessário conversar também com aquilo que julgamos previamente ser negativo. “Pare de gostar apenas do que você gosta! Pare de querer apenas o que você deseja! É no encontro com aquilo que você condena que brotam outros modos de estar e fazer”. É necessário guardar o suficiente de modelos para que eles se recomponham a cada nova criação, sejam modelos estéticos ou relações éticas do trabalho; uma provisão daquilo que a vivência das experiências deu ao artista-produtor é também preciso conservar. No entanto, aquilo que se conserva é preciso sempre colocar, novamente, para conversar, pois tudo respira e é preciso evitar que se transforme uma experiência anterior num modelo inerte e infalível, pronto para ser aplicado numa nova criação-produção. Imitem a Fôrma estabelecida. Não se atinge o MdP e seu plano de consistência fugindo delas grosseiramente, jogando tudo para o alto, como se costuma dizer. Por isso foi apresentado antes o paradoxo dos artistas lúgubres e esvaziados: eles se lacraram em modelos próprios ao invés de buscar pontos de intersecção com os modos de produção chamado Fôrma. Onde o MdP conversa com o MHdP? Havia mesmo várias maneiras de perder seu MdP, seja por não chegar a produzi-lo, seja produzindo-o demais ou de menos, mas também – e sobretudo – por fazê-lo apenas como negação dos modos vigentes de produção. O pior não é permanecer dentro da Fôrma – modelado e sujeitado – mas lançar os modelos vigentes e impostos numa queda suicida que os faria recair sobre nós, mais pesados do que nunca. Eis então o que seria necessário fazer de quando em quando: instalar-se sobre uma fôrma, sobre um determinado modo de produção que não o seu, fazer experiência com ele, buscar aí um lugar favorável, eventuais movimentos desviantes, linhas de fuga possíveis, vivenciá-las, assegurar aqui e ali encontros, provar segmento por segmento das intensidades. É seguindo uma relação cautelosa com os modos de produção vigentes que se consegue liberar alguma energia para compor seu MdP. Ainda é tudo uma questão de experimentação e experiência. Ir dos modelos estabelecidos aos modos desviantes, nossos; fazer com que o desvio oscile delicadamente para o lado do plano de consistência. É somente aí que o MdP se revela pelo o que ele é, conexão de desejos, conjunção de fluxos, processo feito de intensidades. Você terá construído sua pequena máquina, pronta para ramificar-se em máquinas coletivas e para fazer com que coisas aconteçam.

 

Ainda não respondemos à questão: por que tantos perigos? Por que tantas precauções necessárias? Porque não basta opor abstratamente a Fôrma e o MdP. Porque se encontra o MdP já na Fôrma. Existe um MdP que se opõe à formatação dos artistas-produtores chamada Fôrma, mas há também um MdP da própria Fôrma, pertencendo a esta formatação ao mesmo tempo em que se desviando dela. Artista canceroso: a cada instante, com ou sem o aporte financeiro de um patrocínio, um integrante de uma determinada equipe de criação torna-se canceroso, prolifera e perde sua figura, apodera-se de tudo; é necessário que se encontre para ele outro lugar para que seja possível a fabricação de “outro” MdP. Tomemos agora a formatação do sucesso: pode existir nela um teor canceroso do sucesso, um artista brotando de maneira despótica e bloqueando toda a circulação de afetos posto tenha acreditado que o seu modo de operar tenha se tornado único, sem o qual nada poderá, de fato, acontecer. “Uma grande produtora teatral da cidade, talvez a maior, está sendo processada por vários artistas que ‘descobriram’ que ela vinha desviando parte do orçamento de suas produções para manter a sua empresa funcionando”. Ora, há também o MdP do “grande produtor” que pode se precipitar numa inflação posto tenha convencido a si mesmo – e aos outros – que todas as suas produções são sempre fartas e impecáveis. Mas – e isso aconteceu – e quando esse “grande” não puder assegurar uma produção rica e ostensiva? Ele será processado por aqueles que usufruíram dos mimos da produção? A falência de um grande produtor, de um jeito ou de outro, é um modo outro de produção que opera fora da Fôrma. É um desvio do programado. Um desvio canceroso fruto da própria constituição deste modo de produção. Mesmo se considerarmos tal ou qual formação artístico-produtiva, é preciso saber que todas podem entrar em relações de violência e de rivalidade tanto quanto de aliança e cumplicidade. Cada MdP pode, em si mesmo, formar seu tumor específico. A Fôrma também engendra seus MdP, totalitários e fascistas, aterrorizadoras caricaturas de um plano de consistência. Não basta distinguir os MdP intensivos e precários sobre o plano de consistência e os MdP vazios sobre os destroços de modos de produção tornados modelo. É preciso considerar os MdP cancerosos e que se proliferam. Como criar para si um MdP que não o canceroso de um artista-produtor fascista, ou o vazio de um artista drogado, de um paranóico ou de um hipocondríaco?

 

Acreditava-se estar criando um bom MdP, tinha-se escolhido o Coletivo (há sempre um coletivo mesmo se se está sozinho), e, de fato, algo circulava naquele encontro de artistas. Certo dia, ela disse: “Vamos inscrever nosso projeto no Fundo Municipal de Apoio ao Teatro?”. E assim fizeram. Inventaram uma sinopse, justificaram que eram jovens artistas investigando o fazer teatral, agregaram nomes com mais currículo ao projeto, pediram um valor considerado justo etc. E seguiram o trabalho, não ficaram rendidos. Começaram a se encontrar com o elenco de cinco atores-atrizes até que, meses depois, o projeto foi contemplado pelo Fundo Municipal. Eles ganharam cinquenta mil reais para criar uma peça de teatro. O que aconteceu? Eles agiram com a prudência necessária? Foi uma longa experimentação. Durante todo o caminho, o mais difícil foi conseguir renunciar progressivamente às exigências de ter que corresponder ao patrocínio recebido. Vieram as finalidades. Era preciso dar certo e fazer acontecer. Havia o dinheiro possibilitando novas parcerias de trabalho e também anuviando as firmadas antes do patrocínio chegar. Um ator perguntou: “ser profissional é receber um cachê?”. Um dos diretores respondeu: “ser profissional é fazer o seu trabalho com amor e paixão”. Quanto custa o afeto? O dinheiro é um dos ingredientes da produção ou é quem a legisla? No decorrer da criação-produção foi-se anunciando a chegada da Estreia como uma extensão disparatada: ela era aquilo que os artistas-produtores organizavam e também quem ditava aos criadores uma série de exigências. Ter que fazer isso, ter que ser desse jeito, ter que, ter que... Dever, exigência, obrigação. Numa palavra, a Estreia é tudo, sobretudo um juízo externo ao fazer criativo. Eles agiram com a prudência necessária? Lidaram com a Estreia como um programa – motor de experimentação – ou como uma projeção ideal daquilo que deveria se tornar a criação que sequer ainda tinham produzido? De fato, a Estreia não é tão disparatada quanto parece: ela compreende o conjunto de tudo o que pode ser relacionado com as interpretações e as explicações da peça teatral. O processo criativo-produtivo, ao contrário, tende a desfazer os modelos. Não são mais ações e gestos a serem explicados, ou imagens e cenas a serem interpretadas, nem cruzamentos de referências e linguagens a serem desfiados, mas acontecimentos, intensidades em presença. Não se desfaz a Estreia destruindo-a de uma só vez. É necessário preservá-la para sobreviver, para operar algum desvio que – através e junto a ela – manifeste a existência do processo criativo-produtivo. É por conta da Estreia que se saboreiam experiências que, no adiante, podem fazer brotar outros modos de.

 

O MdP é desejo, é por ele que se cria. Há desejo toda vez que há constituição de um MdP. Resta saber se conseguimos realizar a seleção, separar o MdP de seus duplos: artistas vítreos vazios, artistas cancerosos, totalitários e fascistas. A prova do desejo: não denunciar os falsos desejos, mas, no desejo, distinguir o que remete à proliferação de modelos enrijecidos ou aos desvios demasiadamente violentos, e o que remete à construção de um plano de consistência. Senão os MdP permanecerão separados e marginalizados, muitos deles rotulados como “experimentais” e “alternativos” por comparação aos modos instituídos de produção, e triunfarão os artistas e as produções cancerosas e/ou esvaziadas.

Diogo Liberano - Por Bob Maestrelli_edit

Diogo Liberano é graduado em Artes Cênicas – Direção Teatral pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena (PPGAC/UFRJ) e doutorando em Literatura, Cultura e Contemporaneidade (PPGLCC/PUC-Rio). É professor da Faculdade CAL de Artes

Cênicas, dramaturgo coordenador do Núcleo de Dramaturgia SESI Rio de Janeiro e diretor artístico e de produção da companhia carioca Teatro Inominável.

[1] O presente ensaio integra a dissertação de mestrado Teatro (Inominável) – Modos de Criação, Relação e Produção escrita por Diogo Liberano sob a orientação de Eleonora Fabião e defendida em março de 2017 no Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGAC/UFRJ). Este ensaio foi criado diretamente a partir de 28 de novembro de 1947 – Como criar para si um Corpo sem Órgãos? de Gilles Deleuze e Félix Guattari publicado no Brasil pela Editora 34 (em Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia 2, vol. 3) com tradução de Aurélio Guerra Neto, Ana Lúcia de Oliveira, Lúcia Cláudia Leão e Suely Rolnik. Neste ensaio, transcrevo frases inteiras, mantenho estruturas de parágrafos e faço referências conceituais diretas ao original, de forma que fica sugerido ao leitor que também faça a leitura do ensaio de Deleuze e Guattari com o intuito de tirar maior proveito do jogo proposto.

[2] Referência a uma reunião de produção entre o diretor Diogo Liberano e a atriz Natássia Vello quando em produção da temporada de estreia de NÃO DOIS, primeira criação da companhia carioca Teatro Inominável.

referências bibliográficas

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DELEUZE, Gilles. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia 2, vol. 3. São Paulo: Editora 34, 2012.

DELEUZE, Gilles. O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia 1. São Paulo: Editora 34, 2011.

FABIAO, Eleonora. History and Precariousness: In Search of a Performative Historiography. In: Amelia Jones; Adrian Heathfield (Org.) Perform, Repeat, Record.  London and New York: Thames and Hudson, 2012.

FRIQUES, Manoel Silvestre. Edital é pouco, meu prêmio primeiro: uma análise material do “mercado” teatral brasileiro. Sala Preta, Brasil, v. 16, n. 1, p. 179-213. Disponível em: <https://revistas.usp.br/salapreta/article/view/111417/114751>. Acesso em: 25 dez. 2016.

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